Memória das Águas

Memórias das águas

Em fevereiro de 2025 foi inaugurada uma linha em alumínio cruzando parte da Travessa Rua dos Cataventos, que conecta as duas alas da Casa de Cultura e essa com a cidade. A intervenção arquitetônica apresenta um desenho orgânico que remete à margem até onde aproximadamente se estendia o Guaíba antes dos sucessivos aterros implementados em Porto Alegre desde o século XIX. Memória das águas, como foi chamada essa linha, inserida no piso de pedras portuguesas, procura lembrar que, antes das águas terem invadido a cidade na enchente de maio de 2024, foi a cidade quem tomou o território do Guaíba, em inúmeros processos de urbanização considerados parte de um progresso civilizatório. 

Seguir nomeando o fenômeno de retomada do Guaíba ao seu leito e espaço original como “invasão das águas”, colocando-nos no papel de vítimas da natureza, é um ponto a ser discutido e repensado no processo de reeducação de que nos fala Kaká Werá Jecupé. A linha é propositalmente singela, como uma nota de rodapé, justamente por entender que não são salutares novos processos construtivos megalomaníacos, ao contrário do que temos acompanhado acontecer em nossa cidade e mundo afora. 

Memória das águas é uma interferência mínima, que conversa com o existente: uma pequena transformação na cor, na textura, no material do calçamento a fim de sublinhar uma postura de necessário diálogo e de coexistência com o que está posto. A placa que informa sobre a linha, também de forma intencional, não indica autoria. Estamos aqui falando de ações e movimentos coletivos em que os conceitos de centralidade, autoria ou protagonismo sequer fazem sentido. Esperamos que esses elementos, assim como as reflexões dos professores Célia Ferraz e Rualdo Menegat apresentadas a seguir, possam colaborar em novos processos de aprendizado conjunto. 

 

Germana Konrath

Diretora da Casa de Cultura Mario Quintana

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Aqui já foi margem do Delta do Jacuí 

Prof. Dr. Rualdo Menegat

 

Fica difícil de imaginar que onde hoje há lojas, carros e pressa, um dia fluíam águas tranquilas. Você está pisando na antiga margem do Canal dos Navegantes, um dos braços vivos do Delta do Jacuí – um arquipélago com 17 ilhas entrelaçadas por canais serpenteantes. Aqui, se podia ver um mundo fluido, onde a cidade tocava a paisagem com respeito e espanto.

Neste cenário fértil e úmido, a natureza se expressava em abundância. Capivaras, jacarés-de-papo-amarelo, iraras, colhereiros rosados, garças-brancas e biguás faziam parte do cotidiano desse ecossistema vibrante. A paisagem era viva, sonora, em permanente movimento e contava com mosaicos formados por matas, sarandizais, banhados com maricás e, na borda d’água, juncais.

O Delta do Jacuí é uma formação rara, originada do encontro de quatro grandes rios: Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí. Ao desaguarem no Lago Guaíba, suas águas perdem velocidade e depositam sedimentos, formando lentamente as ilhas do arquipélago. São cenários em constante mudança, nascidos da dança entre correntezas e calmarias que se sucederam há milhares de anos. O mosaico deltaico e a planície de seu entorno são muito suscetíveis a inundações. Em 2024, a água subiu até 1,5 metros nas paredes do térreo da Casa de Cultura Mario Quintana. Foi a maior inundação registrada nesse lugar.

O Delta do Jacuí reúne um dos mais notáveis patrimônios naturais de áreas úmidas do Sul do Brasil, razão pela qual ele é protegido como Parque Estadual. Possui semelhanças com o Pantanal Mato-Grossense e com o Delta do Rio Paraná, na Argentina e Uruguai. Essas três formações úmidas estão interligadas. O arquipélago situa-se na extremidade leste do corredor de terras baixas da Depressão Periférica que se conecta, a oeste, com a faixa de terras úmidas dos rios Paraguai — que vêm do Pantanal Mato-Grossense — e Paraná, que deságua no Rio de La Plata. 

Esses grandes corredores de várzeas, banhados e rios da região meridional da América do Sul abrigou culturas originárias, com destaque para os Guarani. Mas também foi território de circulação dos Kaingang e Charrua-Minuano, povos predominantes nas terras altas do sul e do norte do Rio Grande do Sul.

O Delta do Jacuí é, portanto, um ponto de encontro entre a natureza e as culturas originárias da nossa América do Sul. Mais tarde, com a colonização europeia, os açorianos se estabeleceram às margens do Canal dos Navegantes. À época, ele era bem visível contornando o Centro Histórico e era uma das principais vias de circulação de pessoas e mercadorias. Embora pareça um rio, trata-se, na verdade, de um dos 16 canais dessa área úmida. A sul, o arquipélago estende-se até a Ponta do Gasômetro. Dali em diante, temos o lago Guaíba, receptáculo das águas de toda essa rede fluvial.

Com o passar dos séculos, a vila cresceu, o canal foi sendo aterrado para dar lugar ao Cais Mauá, e o concreto ocupou o lugar da água. A Rua da Praia, símbolo do comércio e da vida urbana de Porto Alegre, encobre hoje parte da memória líquida desse lugar. 

Mas a história não se perde. O Delta do Jacuí ainda está bem perto, pulsando um pouco além do alcance dos olhos apressados — visível, por exemplo, desde o terraço da Casa de Cultura Mario Quintana, onde a Metrópole parece lembrar-se de onde veio.

Parar neste ponto é um convite à imaginação: tente ver, sob o asfalto e as fachadas, o reflexo do céu na água, o voo de um biguá, o casco de uma canoa, o murmúrio do passado. Onde hoje é chão firme, já foi a margem viva de um delta.

 

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Porto Alegre e seus caminhos sobre a água

Prof.ª Dr.ª Célia Ferraz de Souza  

 

Porto Alegre sempre teve na água uma companhia constante, ora como caminho, ora como desafio. Ao longo dos séculos, a cidade foi se desenhando sobre aterros que permitiram seu crescimento para além da estreita península onde nasceu.

Esses aterros moldaram praças, avenidas e áreas portuárias que hoje parecem parte natural da paisagem urbana. Da antiga Rua da Praia às margens da Mauá, do desvio do Arroio Dilúvio ao Aterro da Praia de Belas, cada intervenção marcou uma ambição de conectar, modernizar e expandir. A cidade se moldava, e os aterros eram o traço firme do lápis do urbanista, com apoio técnico e visão de futuro.

As grandes enchentes de 1873, 1941 e 2024 mostram que o equilíbrio entre cidade e natureza exige cuidado contínuo. Não basta construir: é preciso conservar, revisar e manter. As águas não esperam obras novas — elas respondem à atenção que se dá (ou não) ao que já existe. Os aterros realizados na península central, até o ano de 1941, ampliaram em três vezes a área, seus limites originais. E as  águas da enchente daquele ano, cobriram exatamente essas novas margens! 

Desde a década de 1970, Porto Alegre passou a contar com um sistema estruturado de proteção contra enchentes: muros, diques, casas de bombas,  redes de drenagem… Essa infraestrutura foi pensada para proteger a cidade de eventos extremos, mas o que muitas vezes faltou foi manutenção constante. Equipamentos desativados, estruturas degradadas e canais obstruídos tornaram a cidade vulnerável, mesmo tendo sido, um dia, bem planejada. Além disso, já se sabia que as cotas adotadas, em torno de três metros, não bastariam para evitar as cheias futuras diante do novo regime climático. A cota de segurança sugerida passou a ser de seis metros! Daí o Muro da Mauá!

Porto Alegre tem uma tradição urbana criativa. Agora, esse espírito deve se renovar com soluções que unam técnica e cuidado: parques que absorvem a água, canais limpos, bombas ativas e um olhar atento ao território.

Transformar uma crise em oportunidade passa por manter o que já foi feito e planejar melhor o que virá. O verdadeiro progresso é o que protege sua gente, sua memória e seu futuro.